utilitarista. Sonhava com um reino utópico onde até as feras vivessem em paz com os 
homens. Muitas vezes, José e Maria confabulavam, já no leito de repouso, sobre aquele 
filho que, altas horas da noite, se mexia, inquieto e suspiroso, no seu beliche de palha 
trançada. E quando assim não acontecia, ei-lo, de olhos abertos, noite adentro, sentado 
na soleira da porta, fitando tristemente a lua farta de luz e elevando-se docemente atrás 
das nuvens. A brisa refrescante então bulia-lhe nos cabelos soltos e mexia-lhe, de leve, 
com a camisola de menino pobre. 

Era um menino destituído de qualquer senso de propriedade dos bens do mundo; pois 

se verberava o companheiro que feria o pássaro com o bodoque de couro cru, ou se 
afligia seriamente diante do cordeiro pisoteado pelo moleque enraivecido, deixava seus 
brinquedos pelos caminhos, abandonava os apetrechos escolares aos demais meninos, e 
sem protesto ou desculpa doava suas sandálias e as porções de alimento a quem primeiro 
os solicitasse. Saltitava pelos campos, rolando encostas e, só mais tarde, quando 
chamado ao acerto de contas com Maria, surpreendia-se das moedas que havia lançado 
de bolsa ajustada à camisola. 

Um velho mago da Fenícia e amigo de José, e que lhe devia relativo favor, 

mandara, de presente, ao menino Jesus valiosa ave-rei coroada de magnífico penacho 
cor de ouro e munificente plumagem purpurina, rendilhada de um azul sedoso e 
manchas opalinas, aprisionada em bela gaiola de grades banhadas a prata. José e 
Maria e os demais irmãos de Jesus deliciavam-se antecipadamente com a alegria e a 
surpresa que deveria dominá-lo ao retornar da escola e receber o régio presente. 
Porém, para surpresa dolorosa de todos e o confrangimento de verem a perda de coisa 
tão valiosa, eis que o menino Jesus, em sua falta de senso dos bens do mundo, soltou a 
ave num gesto feliz e exclamação jubilosa. E riu tomado da mais ampla satisfação ao 
vê-la mover-se entontecida e alçar um vôo majestoso sob o fundo azulíneo do céu 
ensolarado. 

Qual seria o futuro que a família de José poderia augurar para aquele menino tolo e 

desprendido, embora correto, bom e obediente, mas julgando a vida um espetáculo tão 
natural, como devem julgá-la os pássaros, os peixes e os animais? Evidentemente os 
seus contemporâneos também não podiam prever oculto ali naquele ser de maravilhosa 
espontaneidade e absoluta confiança na contextura da vida criada por Deus, o mestre 
que, mais tarde, assim recomendaria: “Olhai para as aves do céu, que não semeiam, 
nem segam, nem fazem provimentos dos celeiros; e contudo vosso Pai celestial as 
sustenta. Porventura não sois vós muito mais que elas?” (Mateus, 6:26-34). 

 
PERGUNTA: — Em face da tradição religiosa ter-nos transmitido até nossos dias a 

imagem de Jesus como um menino diligente, irrepreensível e obediente, é-nos um 
pouco difícil concebermos suas atrapalhações e os constrangimentos semeados por ele 
no seio da família. Que dizeis? 

RAMATÍS: — Os historiadores da vida do menino Jesus viram-se forçados a 

socorrerem-se da própria imaginação, a fim de suprirem as lacunas encontradas na sua 
existência em época tão recuada. A prova disso é que se consultardes as obras 
biográficas de homens de vulto, desaparecidos há apenas um ou dois séculos, 
encontrareis tantas dessemelhanças no relato de suas vidas, a ponto de deixar-vos em 
dúvida quanto à sua verdadeira realidade. Imaginai, portanto, a dificuldade de serem 
ajustados todos os pormenores e as minúcias da vida do Amado Mestre Jesus, que 
além de ter vivido há dois mil anos, em época de poucos registros biográficos, os 
arquivos que poderiam conter algo a seu respeito ainda foram destruídos e incendiados, 
quando da invasão de Tito em Jerusalém. 

Tratando-se de uma entidade que depois se glorificou pela sua própria morte 

sacrificial na cruz, cuja vida foi um hino de beleza e ternura em favor do gênero humano, 
é óbvio que os seus biógrafos também pressuponham uma infância cordata, uma doçura 
e obediência perenes, em perfeita concordância com a fase adulta irrepreensível. 
Naturalmente esqueceram a sua luta interior entre o espírito avesso às convenções e 
aos preconceitos tolos do mundo, e a sua indiferença à própria vida carnal, por se tratar 
de um anjo acima do temor da morte. 

Nazaré, como a miniatura da própria humanidade, era uma fonte de preconceitos 

86