conforme no-lo demonstrou quando o seu pensamento, esvoaçando pelo Cosmo e
situando os planetas habitados por outras humanidades em maior ascensão espiritual,
disse textualmente: “Na casa de meu Pai há muitas moradas”. Ademais, os narradores
ainda cometeram o disparate de transplantarem para os lábios de Jesus as mesmas
palavras proferidas pelo profeta Isaías, do Velho Testamento, referentes a outros
assuntos: “Minha casa (a casa de Deus) será chamada casa de oração”. E, quando o
fazem terminar a sua indignada expulsão dos vendedores, atribuem-lhe ainda outras
palavras que foram exprobações de Jeremias: “Mas vós a tornastes um covil de
ladrões”!
Os cambistas que, à distância, faziam seus negócios, eram modestos vendedores
ambulantes, cuja féria mal lhes garantia o pão de cada dia. Se ele cogitasse, realmente,
de expulsar os “vendilhões do templo”, teria que iniciar sua ação corretiva de dentro para
fora, ou seja, enxotando primeiramente os próprios sacerdotes e os seus sequazes
desonestos. Além disso, seria absurdo que um forasteiro, de visita à cidade santa,
provindo da Galiléia, que era lugar de gente rude e de pescadores ignorantes, se pusesse
a agir daquele modo, sobrepondo-se à lei ou hábito vigente na cidade.
Se Jesus houvesse açoitado o mais insignificante vendedor, os outros o subjugariam
imediatamente, impedindo que o galileu recém-chegado do interior os agredisse e lhes
causasse prejuízos. E os vendedores eram consentidos e tributados por lei. Por
conseguinte, Jesus, como bom hebreu e respeitador das leis do país, não iria protestar,
em público, mediante violência agressiva, contra o que sabia ser lícito.
O sublime Jesus do “Sermão da Montanha” que perdoou e consolou a mulher
adúltera, que recomendou a caridade do perdão “setenta vezes sete”, que aconselhou a
entregar a face esquerda a quem nos bate na direita, certamente, jamais, incorreria na
violência e desordem agressiva, que lhe é atribuída contra os vendedores que
negociavam nos lugares permitidos do templo de Jerusalém. A sua compreensão angélica
tornava-o tolerante e piedoso para com todos os pecadores. Era enérgico, decidido e
heróico, mas sem a violência da ira ou da paixão agressiva.
Por conseguinte, não é somente o caráter impoluto, a contextura psicológica, a
agudeza espiritual e a sabedoria cósmica de Jesus que contestam a possibilidade desse
incidente chocante e que imerecidamente lhe atribuem, mas a própria tradição, os
costumes e as leis judaicas o desfazem facilmente. Os hebreus eram intransigentes em
questão de fé e devoção religiosa e jamais contemporizavam com os seus preconceitos
de “puro” ou “impuro” nas mil distinções que faziam em suas vidas e afazeres mais triviais.
Os próprios romanos, que eram considerados impuros pelos hebreus, evitavam, a todo
transe, atravessar as linhas divisórias do templo, temerosos da fúria do populacho
fanático, que daria a própria vida para evitar tão grave profanação e impureza em sua área
sagrada.
Jesus advogava a liberdade do ser, mas condenava os impulsos do instinto animal,
que é próprio dos brutos. Mesmo quando ele usou de certa severidade sentenciosa,
apontando os fariseus de “túmulos caiados por fora e podres por dentro”, ainda o fez sem
individualizar pessoas. Não feria indivíduos, mas uma classe que se mostrava hipócrita,
perversa, propensa às honras mundanas e aos gozos materiais, embora aparentassem
uma religiosidade piedosa e fanática.
Jesus tinha um senso crítico elevado; burilava o seu pensamento e o vestia com
justeza de palavras; era imune tanto à lisonja como à censura e os seus conceitos sobre
aqueles que empanavam a beleza da vida tornavam-se lições inesquecíveis. Diante da
mulher adúltera, o seu coração generoso absolveu-a e ordenou-lhe que não pecasse
mais. Porém, diante da atitude dos que queriam apedrejá-la, o Mestre, rápido, traçou-lhe
na areia a terrível sentença: “Atire a primeira pedra aquele que estiver sem pecado.”
Jesus era a imagem autêntica do anjo, derramando-se em amor pelos infelizes e
deserdados; mas era também a figura da Justiça, do Direito e da Moral. Muitas vezes o
anjo se afastava para surgir o sábio ou o legislador impoluto, que jamais se submetia ao
servilismo de pactuar com as explorações dos poderosos e a ganância dos ricos.
PERGUNTA: — Quais são as principais contradições nos relatos dos evangelistas?
RAMATÍS: — De modo geral, notam-se diversas contradições entre os quatro
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