Era o ponto final do processo da crucificação. Dali por diante o tempo de vida de cada
um dos crucificados dependeria exclusivamente de sua resistência orgânica, pois havia
casos de indivíduos tão robustos e cheios de vida, que se agüentavam vivos durante dois,
três e até quatro dias na cruz.
PERGUNTA: — Há veracidade nos relatos evangélicos de que Jesus também foi
vilipendiado mesmo depois de pregado na cruz?
RAMATÍS: — Do alto da cruz Jesus circundou o seu olhar terno e amoroso sobre as
criaturas que se achavam dispersas pelo cimo do Gólgota, procurando rostos amigos e
entes queridos. Finalmente identificou Madalena, Salomé e Joana de Khousa; João, o
querido discípulo, e seu irmão Tiago, sempre paciente e entusiasta; Marcos, corajoso e
decidido; Tiago, maior, o fiel amigo. Mais além, quase atingindo o cimo do monte,
chegava Pedro, cujo vulto alto e robusto parecia apoiar-se em seu irmão André; a seu
lado, Sara e Verônica amparavam Maria, a infeliz mãe, que retornava ao Gólgota, depois
de socorrida pela terceira vez dos seus desfalecimentos cruciantes ante o martírio do
filho querido. Aquele quadro afetivo enfeitando as imagens dos seres que tanto ele tinha
amado na sua jornada terrena, que pouco a pouco venciam o temor humano e vinham
se juntar ao pé da cruz incendidos pela força da vida espiritual, satisfez Jesus e o
encheu de regozijo. A sua morte e seu sacrifício já não seriam inúteis, pois as almas que
escolhera para transmitir as suas idéias à posteridade, agora se comunicavam entre si e
se agrupavam pela força coesiva dos pensamentos e dos sentimentos evangélicos,
assim como as ovelhas, dispersas pela tempestade, depois se reúnem novamente sob o
carinho do seu pastor.
Mas, de súbito, Jesus foi interrompido no seu devaneio consolador pelos gritos,
chalaças e escárnios dos infelizes agentes de Caifás, que antes de se retirarem do
Gólgota ainda procuravam arrematar a sua ignomínia com gestos de indiferença
selvagem para agradarem aos seus chefes vingativos. Acossados pelos espíritos das
trevas, sarcásticos o despeitados pelo triunfo indiscutível de Jesus, eles desceram à
vileza de um humorismo tão negro como suas próprias almas.
— Desce da cruz, ó Filho de Deus! Chama teu Pai para te livrar do suplício! Guarda-
me um lugar no teu reino! Para onde fugiram as tuas legiões de anjos? Salva o Rei dos
Judeus no seu trono da cruz! Desce da cruz, salva-te primeiro e nós seremos teus
crentes!
Enquanto riam fazendo gestos de deboche, Jesus pousou-lhes o olhar compassivo
e resignado, fitando-os sem ressentimento, inclusive aos soldados que, às vezes, riam
das zombarias dos esbirros de Caifás. Imensa ternura invadiu-lhe a alma, vibrando sob o
mais puro e elevado amor. Novamente o seu olhar claro e expressivo, repleto de
poderoso magnetismo angélico, então resplandeceu num fulgor majestoso, envolvendo
aqueles seres tenebrosos num banho purificador e balsâmico, que os fez estremecer
tocados pelo remorso e os fez silenciar. Após aquela transfusão de luz e amor, que
tributou aos seus próprios algozes, abrindo-lhes o coração para um entendimento mais
feliz da vida espiritual, Jesus ergueu os olhos para o alto e a sua voz suave e
misericordiosa então se pronunciou vibrando ditosa no holocausto de sua própria vida:
— “Pai, perdoai-lhes, porque eles não sabem o que fazem!”
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PERGUNTA: — Jesus pronunciou todas as palavras, que lhe foram atribuídas, do
alto da cruz?
RAMATÍS: — O Sol dardejava raios escaldantes sobre o dorso desnudo do Amado
Mestre. O suor brotava-lhe do rosto em grossas bagas e o obrigava a fechar os olhos
aumentando-lhe a tortura. Ele estava esmagado pela dor mais cruel. O corpo tenso, sem
poder efetuar qualquer movimento sedativo, o excesso de sangue nas artérias e os
vasos sangüíneos comprimidos faziam doer-lhe atrozmente a cabeça. As feridas dos
pés e das mãos sangravam já empastadas, em parte, pela coagulação. O suplício da
cruz era de espantosa atrocidade, pois a posição incômoda do crucificado produzia,
pouco a pouco, uma rigidez espasmódica pela obstrução progressiva da circulação; o
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Lucas, 23:34.
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