O agente religioso entregou-lhe a peça acusatória, informando sem esconder sua
arrogância;
— Jesus de Nazaré, rabino galileu, foi considerado culpado por unanimidade da
pequena corte de juízes do Sinédrio, mas não possui um só testemunho a seu favor, o
que o impede de justificar o recurso de apelação; também não pode ser discutido pelo
Grande Conselho, em face de sua condenação de culpa ter sido por votação unânime.
Pilatos fixou duramente o emissário do Sumo Sacerdócio de Jerusalém, que jamais
pestanejou sob o seu olhar inquiridor. Em seguida leu a peça acusatória, que assim
dizia: “Jesus de Nazaré, rabino galileu, sedutor, inimigo da Lei, falso rei de Israel,
herético Filho de Deus, Messias impostor, explorador de viúvas e órfãos, fascinador de
donzelas, agitador e depredador do Templo, profanador de oblatas e inimigo das
devoções, assim julgado unanimemente culpado por esta corte em juízo de
emergência”.
— Qual foi a sentença exarada pelo Tribunal Sagrado? — indagou Pilatos, embora
desde o dia anterior já estivesse a par de todas as acusações contra Jesus, inclusive
quanto à delação de Judas, que realmente o convencera das intenções subversivas do
movimento cristão.
— Conforme a Lei do Tribunal Sagrado, somente hoje, à tarde, o culpado poderá ser
sentenciado — redarguiu-lhe o agente de Caifás. E num tom de profunda ênfase,
exclamou:
— Mas Jesus de Nazaré não feriu apenas o poder divino, porém, comprometeu a
ordem pública. Já foi julgado pelo direito sagrado, que está acima das competições
humanas, mas agora encontra-se perante o juízo representativo do Imperador Tibério,
que o julgará como crime civil de lesa-pátria e subversão.
E antes mesmo que Pilatos se insurgisse contra essa arenga impertinente e
provocante, em que o Sumo Sacerdote fazia-o lembrar-se de suas próprias obrigações, o
beleguim ainda prosseguiu, num tom indagativo, sem mesmo disfarçar o ar acintoso de
desafio:
— Jesus de Nazaré, desmoralizador do direito sagrado, será lapidado como ímpio e
profanador, mas isento de culpa perante Roma e para estímulo de novas sedições; ou
considerado rebelde à ordem pública, sofrerá o suplício da cruz em bom cumprimento
dado pela sentença do ínclito representante do Imperador Tibério.
Pôncio Pilatos recuou no espaldar da poltrona, os lábios entreabertos e pasmados de
tanta audácia. Estava habituado ao cinismo e à petulância dos hebreus, porém, jamais
tolerava que se imiscuíssem em seus negócios e nas suas obrigações públicas. O Sumo
Sacerdote não lhe exigia a morte de Jesus, o rebelde inimigo do Clero Judeu; mas
parecia desafiá-lo sob a ameaça de um rosário de conseqüências graves, se assim não o
fizesse. Com isso demonstrava que possuía todos os trunfos na mão e jamais abdicaria
de tal favor.
Sentiu-se sumamente ofendido no seu amor-próprio, ante a atitude descarada do
esbirro de Caifás, tentado a dar uma lição ao seu capataz do Templo, pois um romano
jamais se curvava tão facilmente à decisão acintosa de povos escravos. Mas isso
também dependeria de conhecer melhor o sedicioso Jesus, pois, se o soltasse por um
capricho e ele promovesse qualquer nova insurreição, ser-lhe-ia difícil explicar a Tibério
os motivos que o fizeram decidir de modo tão discutível. Então, em vez de inquiri-lo na
ante-sala do Pretório, ante os juízes, mandou conduzir Jesus ao seu aposento de
trabalho. Ante a fraqueza e o estado aflitivo do rabino galileu, mandou sentá-lo:
— Que fizeste, galileu, para ateares a ira dos juízes do Sinédrio e atraíres tantos
testemunhos de sedição, que me obrigas a crucificar-te? — indagou Pilatos com suma
altivez, mas de certa afabilidade na secura da voz.
Jesus ergueu os olhos para o Procônsul, algo surpreso do tratamento mais ameno
daquele rígido romano e volveu-lhe um olhar de gratidão. Pilatos remexeu-se na
poltrona, algo contrafeito.
— Fala, galileu! — ordenou, autoritário e impaciente. — Por que violaste a ordem
pública?
Ante aquela rude, mas humana compreensão, Jesus propunha-se a expor os
motivos de sua vida, os seus sonhos e as suas idéias da imortalidade, as relações entre
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